LOCALIZAÇÃO
AQUI, SERTÃO É SUBSTANTIVO FEMININO
Imersão: Comunidade Campo Buriti
Onde: Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais
Ofício: Moldagem de barro
Comunidade: Sertaneja
No coração do Vale do Jequitinhonha,
pousamos na comunidade Campo Buriti,
zona rural entre Turmalina e Minas Novas,
municípios do nordeste de Minas Gerais.
Por anos, a região foi considerada a de pior IDH no Brasil.
Índice de Desenvolvimento Humano...
E o desconforto por essa classificação me faz questionar:
o lado humano de quem não foi desenvolvido?
os de lá ou os de fora?
O Vale do Jequitinhonha, ou 'Vale das Mulheres', como também é conhecida a região, me fez entender através das que lá vivem, que a força feminina é universal e ainda maior quando nos mantemos unidas.
Nossa imersão transitou por três comunidades vizinhas: Campo Alegre, Coqueiro Campo e, principalmente, Campo Buriti.
Todas marcadas pela conhecida complexidade socioeconômica do Vale - considerado durante anos como a área de pior "índice de desenvolvimento humano do país" - também carregam um grande tesouro cultural: seu singular e revelador artesanato ceramista.
O fazer vem de incontáveis gerações.
Dona Vitalina, a artesã viva mais antiga da região, nasceu em 1910 e conta que aprendeu o ofício com sua avó.
No Museu Antonio Preto - casinha singela e primeira escola da comunidade - estão algumas peças de cerâmica antigas, e que obviamente não são as pioneiras, mas que já são bastante diferentes das atuais. As bonecas esculpidas hoje, têm traços idênticos aos das filhas das artesãs. Já as bonecas que estão no museu, resistindo à força do tempo, têm completa feição indígena.
O auto-retrato nunca esconde a origem do artista!
Histórias contam que as antepassadas aprenderam a moldar o barro com as índias que viviam na região, quando as cumbucas de cerâmica ainda eram produzidas para uso doméstico ou para guardar restos mortais de entes queridos, conforme os indícios comprovaram ao encontrarem as peças enterradas.
Vivendo sob a dura paisagem da caatinga, numa atmosfera bela e hostil, se misturaram os saberes do índio ao do negro africano e ao do branco latifundiário, que migrou para as pastagens naturais das securas nordestinas para criar seu gado:
nasce o sertanejo.
Naquele mês, entreguei minha alma ao sertão mineiro. Foi viagem sem volta.
Eu nunca tinha estado debaixo de um céu noturno tão vivo como o daquela roça. Era como se o céu, num ato de altruísmo, quisesse chegar bem perto e dar as mãos ao solo seco.
Riqueza sobrevoava a pobreza, e as pessoas entre aqueles dois extremos carregavam na pele o contraste: vigas no rosto marcadas pela permanente presença do astro sol; com o brilho da alegria nos olhos, que parecia refletir das estrelas.
Ainda acho que é a constelação que inspira as artesãs a criarem os tantos detalhes na pintura de suas bonecas de barro.
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No ônibus que me levou de Turmalina à zona rural,
só haviam mulheres.
Nas ruelas verdes empoeiradas da roça,
muitas mulheres.
Nas duas associações de artesanato visitadas,
cerca de 50 associadas em cada.
E todas mulheres.
Das peças produzidas; noivas, grávidas, amamentando, colhendo, esculpindo, trabalhando, vivendo, de mãos dadas.
Mulheres.
Naquele momento eu enxerguei a força do feminino, ativa numa realidade muito distante da minha, até então.
E onde estavam os homens?
Isso eu entendi mais tarde, conversando com um deles, que quando criança também aprendeu a mexer no barro com a mãe. E que, se pudesse, "viveria disso porque faz bem pra cabeça".
A história de exploração no Vale começou cedo. Séculos atrás, a região que estávamos fazia parte do território baiano, até descobrirem diamantes no seu solo. Assim, se tornou parte de Minas Gerais.
Mais tarde, com a chegada das indústrias, muitas ali se instalaram, deixando sem escolha a população local expulsa de suas terras para a ocupação dos gigantes loteamentos.
Supriu-se a curto prazo uma ilusória oportunidade de trabalho, mas logo nos anos 80 veio o boom do processo de mecanização, que substituiu o serviço humano por máquinas, mantendo contratados pouquíssimos trabalhadores: os mais "entendidos" - como me foi dito - apenas para manusear os equipamentos.
O cultivo de eucaliptos por uma grande empresa exportadora de celulose, madeira e carvão é hoje a mais marcante atividade econômica da região. E marcante porque se tornou improvável não notar: as comunidades foram tomadas pelos eucaliptos. Muitos e muitos hectares de cultivo. As crianças não conhecem o pôr do sol, as plantações o cobriram.
Além da tomada das terras e do desemprego causado, essa atividade também impactou todo o ecossistema local: cada pé de eucalipto demanda muita quantidade de água, esgotando sua disponibilidade para a população em um cenário hídrico já naturalmente problemático. Como se não bastasse, para o crescimento do negócio, utilizam de substâncias químicas que reduzem a fertilidade do solo e afetam a diversidade de espécies, tanto da flora quanto da fauna local.
OS PEQUENOS NAS MÃOS DOS GRANDES
"Há muitos anos passados, com meus próprios olhos vi, o meu pai ser enganado sem forças pra reagir.
Na minha casinha pobre um nobre cidadão chegou, cumprimentando meu pai, e assim ele falou:
'Bom dia Sr. Vicente, eu vim aqui te falar. pra me vender sua terra, uma firma vai chegar.
Ela chegando o senhor vai se desapropriar, e se não quiser vender, a firma irá tomar'.
Meu pai era analfabeto e tinha pouco instrução. Por medo de ser roubado, caiu nas garras do ladrão. (...)
Quando essa firma chegou, desmataram toda a mata, e o sossego acabou.
Milhões de pés de pequi, sem outras frutas falar, foram quebradas e queimadas, sem poder reclamar.
Mil qualidades de bichos que nessa mata havia, e nesse acaba-mundo, aqueles bichos morria. (...)
E depois que eu cresci, agora não sou criança, não sei se é desabafo, ou é resto de esperança.
Se diz que o meu vale é pobre, é o 'vale da miséria', a pobreza aumentou muito mais do que se era!
Enquanto eu existir, uma esperança brilhará, de ver em nosso vale projetos pra melhorar
E quando for daqui uns tempos meu sonho vou realizar: no livro desse Vale outra história estará,"
por Deuzani Gomes dos Santos, nossa anfitriã-poeta-artesã-mãe-postiça
Resultado: migração.
Para longe,
para a terra de outros
a procura de sobrevivência
A representatividade do serviço da mulher vem aumentando dentro de um contexto social de forte migração sazonal masculina, na qual elas também cuidam da agricultura e dos trabalhos domésticos.
Hoje, desempregados, muitos desses homens retornam às suas casas e é a mulher quem possui a maior participação na renda familiar, na maioria das vezes, devido ao artesanato.
É no meio dessa realidade que o trabalho desenvolvido pelas artesãs ceramistas do Vale do Jequitinhonha ganha ainda mais valor. E entender que incentivos e ações inovadoras com o artesanato poderiam desenvolver aquela comunidade me tirou a sensação de impotência diante de tanta injustiça social e me fez partir para a ação.
Realizamos lá, à convite da ArteSol, ONG parceira e apoiadora do MAOS, o primeiro programa de Intercâmbio Cultural - Troca de Saberes.
Nossa facilitação durou 1 mês, com o designer belga Sep Verboom (Livable Products), especializado em trabalhos sócio-artísticos com artesãos do mundo todo. Ele, junto às artesãs, desenvolveram peças posteriormente expostas no MADE - Mercado Arte Design 2016, com renda revertida à comunidade.
Além da instrução técnica. onde abordamos novas possibilidades de moldagem, formatos e padrões de pintura nas produções, sentimos na raiz do projeto de intercâmbio como troca humana, na vivência local e valorização dos ofícios tradicionais.
Valores ultrapassam idiomas, costumes e limites etnográficos. Aquela comunidade nos mostrou que, acima de tudo, é como uma grande família que aceita a casa cheia, com todas as nossas diferenças.
Segundo Dona Isabel - mãe de nossa anfitriã Deuzani - "mestre é aquele que sabe entrar e sair".
Com a mensagem entendida e cravada, deixei o sertão e, me preparando para o retorno à terra da garoa, cai um dilúvio no nosso último dia de imersão.
A chuva trouxe o mistério improvável, para comprovar a abundância e a sabedoria daquele sertão feminino.
CIRANDA SERTÃO FEMININO
COCRIAÇÃO MIRA
+ ARTESÃS VALE DO JEQUITINHONHA
o feminino unido em roda,
girando na mesma direção
diante de nossas diferenças
e da abundância que existe
na natureza à nossa volta.